Coisas do Bolzoni

segunda-feira, 16 de março de 2020

O CURIOSO CULTO À PERSONALIDADE DOS DITADORES DO PASSADO

Fernando Baptista Bolzoni

A Alemanha é um país estranho. É realmente curioso ver como, apesar do conhecimento sobre os males do nazismo, é possível encontrar tantas homenagens a Adolf Hitler em espaços públicos. Por todo o país, numerosas ruas e praças ostentam orgulhosamente o nome do antigo líder, inclusive sua cidade natal. Na capital do país, além de dar nome a uma praça em bairro nobre e a uma avenida que rasga a zona central, foi ele homenageado com um museu, sediado no imóvel de sua antiga residência, e pelo monumento mais belo e imponente da cidade, situado em sua praça principal e recentemente restaurado com esmero. A força de sua marca é tal que mesmo o Parlamento, completamente esvaziado de poder enquanto durou o seu regime, não se furta a também prestar-lhe reverência: o vestíbulo anexo ao plenário do Bundestag é denominado Adolf-Hitler-Saal, onde, ao ingressar, o visitante encontra, à direita, um grande retrato do ditador em corpo inteiro; no fundo do salão, um busto em bronze; junto à entrada, em um nicho na parede à esquerda, a marca de sua obra literária: um estojo contendo um exemplar de “Mein Kampf” com a capa ricamente folheada a ouro. Há alguns anos, foi também o Parlamento a fazer o registro do jubileu do falecimento do líder nazista com a publicação da obra “O Pensamento Político de Adolf Hitler”.

Quem conhece a Alemanha, especialmente Berlim e o prédio do antigo Reichstag, sabe que o parágrafo acima não contém verdade alguma: mas tudo fará sentido se trocarmos “Alemanha” por “Rio Grande do Sul”, “Mein Kampf” por “Constituição de 14 de julho de 1891”, “Bundestag” por “Assembleia Legislativa”, “nazismo” por “castilhismo” e “Adolf Hitler” por “Júlio de Castilhos”.

O passar dos anos e a mudança dos regimes frequentemente produzem tentativas de reescrita da história. George Orwell sabia muito bem o que dizia quando escreveu: “Quem controla o passado controla o futuro: quem controla o presente controla o passado”. No Brasil, pudemos testemunhar isso após a proclamação da República: para ficar em Porto Alegre mesmo, a mudança da denominação de todos os logradouros que lembrassem o Império (a antiga Rua “de Bragança” tornou-se “Marechal Floriano”, a Rua “do Imperador”, virou “da República”, a Rua “Imperial” tornou-se “Benjamin Constant”, a Rua “da Imperatriz” passou a “Venâncio Aires”, a Rua “Dona Isabel” virou “Demétrio Ribeiro”, a Rua “da Princesa” tornou-se “Sete de Abril”, a Praça “Conde D’Eu” passou a ser “Quinze de Novembro”, e a Praça “D. Pedro II” tornou-se “Marechal Deodoro”) demonstra o esforço de apagar a incômoda lembrança do passado monárquico.

A comoção causada por um conflito militar também se presta aos movimentos de reescrita do passado: o envolvimento brasileiro na Segunda Guerra Mundial foi perpetuado em Porto Alegre pela mudança dos nomes das Avenidas “Itália”, “Germânia” e “Napolitana” para “Arabutã”, “Cairu” e “Olinda”, em homenagem aos navios mercantes brasileiros afundados por submarinos alemães (para não falar na adoção do nome “Sociedade Ginástica Porto Alegre” pelo antigo “Turnerbund”). Mais recentemente, a polêmica da denominação do principal acesso viário ao centro de Porto Alegre (Avenida “Castelo Branco” / “da Legalidade e da Democracia”) mostrou que a advertência de George Orwell continua atual: o presente continua tentando acertar as contas com o passado para controlar o futuro. Por isso mesmo, chama a atenção a persistência do culto à memória de Júlio Prates de Castilhos. Vivo, fez-se a personalidade política dominante do Rio Grande do Sul; morto, projetou sua sombra através de seguidores que submeteram o Brasil a dois longos períodos ditatoriais.

Castilhos foi sem dúvida um fenômeno: os 43 anos de sua curta vida foram mais que suficientes para fazê-lo talvez o principal personagem da história política sul-rio-grandense. O jovem diretor do jornal “A Federação”, órgão do Partido Republicano Rio-grandense, fez-se profeta e agente da queda do Império ao soprar as brasas da “questão militar”; redator solitário da Constituição Estadual, implantou a única experiência mundial de um regime positivista, como ideólogo e Presidente do Estado. Embora Ditador (ou talvez por isso mesmo), teve seu prestígio atestado pelos milhares de gaúchos incorporados ao seu cortejo fúnebre. Deixou também como legado a confirmação do lema positivista gravado em sua sepultura: “os vivos são sempre e cada vez mais governados pelos mortos”; de seu mausoléu no cemitério da Santa Casa de Porto Alegre, pôde ver o sucesso dos discípulos na perpetuação de sua obra. Borges de Medeiros manteve as rédeas do poder no Estado por um quarto de século após a morte do mestre e passou o bastão para Getúlio Vargas. Vargas nunca escondeu sua profunda admiração pelo mestre: no frescor de seus vinte anos de idade, foi escolhido para prestar a homenagem dos estudantes da Faculdade de Direito de Porto Alegre ao líder falecido, em um discurso pontuado de louvações que não soariam estranhas cinquenta anos depois na boca dos comunistas em seu pranto por Stalin:
“Júlio de Castilhos para o Rio Grande é um santo. E santo porque é puro, é puro porque é grande, é grande porque é sábio, (...).”

Vargas superaria de longe o velho Borges: em poucos anos, ele aplicaria o método castilhista de governar em escala nacional. Assim como o próprio Castilhos, Borges e Vargas não cederiam o poder aos adversários senão à força: e mesmo as guerras civis gaúchas de 1893 e 1923 não foram suficientes para apear os ditadores de plantão. Castilhos e Borges concluíram seus mandatos e passaram o poder a sucessores de sua confiança, mesmo à custa dos maiores banhos de sangue da história do Rio Grande do Sul. Mesmo deposto em 1945 por um golpe militar incruento, Vargas também conseguiu ver-se substituído por um seguidor confiável (à beira de uma nova deposição, menos de dez anos depois, preferiu pagar o preço supremo do suicídio a tolerar a vitória dos adversários, “saindo da vida para entrar na História”).

Mesmo que os estreitos limites de um artigo fossem apropriados para tratar de Júlio de Castilhos, seria perda de tempo – e excesso de pretensão – esperar ser original ou sequer profundo em um campo explorado com tanto brilho por Sérgio da Costa Franco e Ricardo Vélez Rodrigues. Interessa mais tentar entender o processo através do qual a memória de Castilhos escapou da crítica revisionista que deixou incólumes as homenagens prestadas ao “Patriarca do Rio Grande do Sul” nas ruas, avenidas, praças e escolas de praticamente todas as cidades gaúchas. A explicação parece estar no reduzido conhecimento de nossa história. À medida que esverdeia o bronze das estátuas, a pátina do tempo vai tornando os homenageados mais e mais imunes à crítica, permitindo talvez separar a relevância da figura histórica dos seus pecados mais graves. O resto fica por conta da inércia. Exceto em tempos revolucionários, eventuais ondas revisionistas tendem a ser limitadas a determinadas mudanças da percepção contemporânea sobre dado assunto, calhando às vezes de esbarrar em alguma homenagem antiga a determinado vulto ou fato em conflito com ela. Também ocorre de, superado o ímpeto revisionista e suficientemente consolidado um novo regime, voltar-se a render homenagem a figuras cuja memória tentou-se anteriormente apagar. Ainda para ficar nos exemplos de Porto Alegre, a mudança dos nomes das ruas “do Imperador” e “da Imperatriz”, da “Praça D. Pedro II” e da “Rua da Princesa” não impediu que, tempos depois, as homenagens imperiais voltassem a surgir com o batismo da “Rua D. Pedro II”, da “Avenida Princesa Isabel” e dos viadutos “D. Pedro I” e “Imperatriz Leopoldina”.

Ainda assim, Júlio de Castilhos intriga. O vigoroso ataque de Décio Freitas, em seu “O Homem que Inventou a Ditadura no Brasil” não se mostrou suficiente para deflagrar um movimento de revisão da compatibilidade entre a biografia desse cidadão tão profusamente homenageado no Rio Grande do Sul e os valores democráticos que tanto gostamos de dizer que cultivamos. Se é compreensível que a pequena cidade natal de um ex-governador possa ter orgulho até hoje em ostentar o nome de seu filho mais proeminente e se o tempo transcorrido e o respeito ao patrimônio público podem explicar o porquê de os descendentes de tantos maragatos perseguidos e mortos sob as ordens de um ditador não terem nunca destruído nenhum dos tantos monumentos a ele dedicados, a coisa torna-se ainda mais intrigante ao darmos uma olhada no Palácio Farroupilha, sede da Assembleia Legislativa. Abaixo da esplanada, próximo à entrada, onde à noite tantos dos sem-teto do centro de Porto Alegre buscam o seu abrigo, há uma grande e vistosa inscrição: “Povo Sem Parlamento é Povo Escravo”. Lá dentro, no imponente vestíbulo do Plenário, algumas das homenagens mais relevantes do Estado do Rio Grande do Sul são prestadas pelos representantes do povo gaúcho sob os olhares severos do retrato e do busto do ditador cujo nome batiza o salão. E em um nicho junto à entrada encontra-se um exemplar da Constituição do Estado redigida por Júlio de Castilhos. Se o volume é uma obra de arte, com a capa ricamente folheada a ouro, o conteúdo do mesmo é uma ode à ditadura: suas disposições investiram o poder legislativo no assim denominado à época Presidente do Estado, deixando à Assembleia (cuja sede abriga esse documento com o orgulho de quem não o entendeu) apenas  a competência para aprovar o orçamento do Estado e as contas do governo no exercício anterior. Quanto ao “povo escravo”, ele era tangido a votar a descoberto (e não por acaso, a reeleger o governador tantas vezes quantas quisesse o ditador de plantão). Nessa toada, Borges de Medeiros, fiel seguidor de Castilhos, governou o Estado por cinco mandatos, totalizando vinte e cinco anos de mando pessoal: recorde gaúcho que poucos ditadores pelo mundo afora lograram bater.

Ao ser entrevistado pelo psiquiatra Dr. Douglas Kelley, às vésperas de seu julgamento em Nuremberg, o sucessor designado de Hitler disse-lhe: “em 50 ou 60 anos, haverá estátuas de Hermann Göring por toda a Alemanha.” O Reichsmarschall estava enganado: mesmo após o transcurso de tantos anos, não há mais homenagens ao nazismo na Alemanha. Mas ainda há pencas de homenagens à ditadura castilhista no Rio Grande do Sul.

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